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quinta-feira, agosto 21, 2003

Mando um pedaço de Matrioshka. Enjoy!


Meu amigo famoso

Se eu fosse escolher uma trilha sonora para o meu filme, noventa por cento seriam de músicas suas. A minha vontade de conhecê-lo sempre foi tanta que ele deve ter sentido isso de alguma forma e caminhado em minha direção. Isso, porque o nosso encontro foi totalmente imprevisível. Eu não poderia ter influenciado menos pra que ele acontecesse. Parecia tão irreal, que mesmo vendo ele sentado na minha frente, conversando comigo, era como se eu estivesse vivendo mais uma de minhas fantásticas histórias de ficção. Fiquei meio atordoada com a possibilidade de trabalhar com o meu maior ídolo da música e mais atordoada ainda quando vi a chance de tornar-me sua amiga. No dia seguinte ao nosso primeiro encontro profissional, recebi um telefonema seu me convidando para um almoço.
“Pôxa, que pena. Já almocei!”.
Que burra! E daí que eu já havia almoçado? Vê-lo comer já seria o suficiente. Eu poderia ficar lá sentada apenas olhando ele mastigar, engolir, mastigar novamente e engolir novamente. Eu poderia até passar o sal pra ele! Ou, se ele quisesse, eu poderia limpar o canto de sua boca com o guardanapo. Por pouco eu não perdi a oportunidade desse nosso encontro, mas – não me pergunte por quê – ele realmente queria me ver naquele dia. Com toda sua invejável maestria, soube contornar a situação.
“Não tem problema, Júlia. Tomamos um café, então”.
Perfeito! Apesar de não gostar de café (eu sempre achei que café tivesse um leve gosto de mau hálito, embora não tanto quanto a cerveja) não me pronunciei. Apenas aceitei o convite e fui ao seu encontro. Eu não sabia muito bem o que eu iria dizer ou o que eu iria fazer quando chegasse no restaurante combinado, então pensei em levar algo comigo pra conseguir desenvolver um assunto. Algum objeto que pudesse desencadear uma conversa, entende? Mas o quê, pensei. Fotos? Não! Muito pessoal pro primeiro encontro. Livros? Quem sabe eu poderia ler pra ele comer melhor. Que idéia ridícula! Talvez os textos de minha autoria? Isso! Coloquei tudo em uma pasta vermelha: a peça que eu havia acabado de escrever e meus poemas. A pasta vermelha era o meu escudo, minha proteção. Se me desse um branco no meio da conversa, ela me salvaria. A pasta, praticamente, chegou antes de mim no restaurante.
“Oi, tudo bom? Segura essa pasta.”
Não consegui falar mais nada.

Antes de sair de casa, havia pensado sobre todos os comentários possíveis sobre as minhas obras e ensaiei todas as respostas possíveis a esses comentários. Tudo em vão. Ele ignorou a minha pasta! Eu realmente estava em apuros. Pensa rápido, cabecinha! Mostra como você é inteligente e sabe manter uma conversa culta.
“Como você consegue beber café e coca-cola light ao mesmo tempo?”
Bem, podia não ser uma pergunta, digamos, tão intelectualmente elaborada, mas achei que, para um início de conversa, poderia mostrar uma certa informalidade – sem contar que eu realmente estava curiosa em saber a resposta. Em seguida ele me dirigiu um olhar do tipo Eu Sou um Adulto e Você É uma Criança e, em câmera-lenta, num gesto único e sereno, acendeu uma cigarrilha de baunilha (esse gesto se repetiu muitas e muitas vezes durante o nosso encontro). Essas longas pausas me deixavam num estado anterior ao pânico total, como se eu fosse acabar esquecendo o que estávamos conversando. Não me lembro se ele chegou a responder, mas recordo de algo do tipo: “não bebo água há cinco anos”. Bom, a cada nova descoberta sobre sua vida, eu me via cada vez mais sua fã. Eu o ouvi atentamente e respondi a todas as suas perguntas – altamente profundas e pessoais. Foi terrível! Eu já estava a um passo de contar a ele todos os meus segredos mais íntimos. De repente, minha vista se fez turva, minhas pernas rijas. Suor. Suor. Eu só pensava nele: no banheiro.
“Onde será que fica o banheiro? Eu preciso ir ao banheiro.”

Pensei tantas vezes em liberar o meu xixi, desde que cheguei, mas não tive coragem de abandonar a conversa. Não quis perder nenhum detalhe daquele encontro e nem enfrentar uma fila em direção a uma, não tão higiênica, privada. Seria muito trabalhoso atingir aquele mesmo grau de excelência da nossa discussão quando eu voltasse do desagradável banheiro, além do mais, eu estava correndo um grande risco de derrubar alguma latinha de coca light ou alguma xícara de café no chão, na tentativa de me levantar, já que estavam por toda a parte. Ahhhhh!! Então segurei, segurei, segurei ao máximo, até não conseguir mais me mexer na cadeira com tanto peso na minha bexiga. Juntei todas as minhas forças, fechei os olhos e me retirei.
“Com licença, é urgente!”
Eu avisei que estava indo ao banheiro, que estava – por algum motivo – deixando a mesa. As pessoas normais avisam quando estão se retirando da conversa. Não esse meu amigo. Ele não poderia! Seria muito pouco excêntrico pra sua personalidade. Que susto que eu levei quando ele me deixou na mesa falando sozinha pela primeira vez (tiveram outras dezenas de vezes). Será que eu falei alguma besteira? Será que ele quer que eu pague a conta e ficou com vergonha de pedir? Nenhum dos dois, graças a Deus.

Dedicamos dias seguidos um ao outro. Conversávamos sobre mim, sobre ele, sobre o nosso trabalho juntos e, claro, sobre a pasta vermelha. Ele bagunçou completamente a minha rotina. Destruiu toda a simetria dos meus dias. Senti-me como no filme Encontrando Forrester, com Sean Connery. Oh, Sean Connery. Meu Sean Connery, só que mais magro e mais alegre.
Assim foi que, ora almoçando com ele, ora caminhando ao seu lado na praia de Ipanema, ora olhando pra cara dele, sem dizer nada, fiquei conhecendo meu amigo famoso, que faz e pensa coisas que gente famosa nunca pensaria em fazer.
Como toda amizade, a nossa teve um ápice. E também uma queda. Hoje ela é serena. Traz paz. Rende histórias que nos surpreendem e fazem a gente rir sozinha, na fila do supermercado. E outras que a gente chora baixinho e disfarça dizendo que o filme era muito triste.
E outras que a gente jura que nunca poderiam ter acontecido, porque foram lindas demais.

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