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domingo, julho 06, 2008



Mesmo assim

Talvez tenha acontecido mas, sinceramente, não lembro. Não lembro de você me surpreender ao tirar um saquinho plástico da bolsa, providencialíssimo, para isolar o nosso guarda-chuva molhado, só menos molhado do que a barra da sua calça, eu te dizia, guarda-chuva molhado é a pior coisa do mundo, depois do cachorro-quente, e você rindo, mesmo com a barra da sua calça molhada, molhada. Não lembro de você me pedir para ler em voz alta aquele trecho do poema do Vinícius, em que ele diz que. É, para falar a verdade, eu não lembro se você lia livros, que dirá poemas, e sequer se sabia quem era Vinícius. Não lembro de você me trazer, com um sorriso infantil, qualquer Saramago abarrotado, conseguido num velho sebo, depois de negociar quase aos prantos a barganha de uns reais (geralmente dois), bem coisa de freqüentador de sebos. E se você não lia, não poderia freqüentar sebos, que dirá barganhar, mas isso eu ainda não sabia.

Na verdade, isso eu lembro bem, você sorria pouco, bem pouco mesmo, tão pouco que o que guardo é a sua fisionomia carrancuda, como a de um bebê gêmeo que teve o leite surrupiado pelo irmão. Não lembro de você querer assistir P.S: Eu Te Amo comigo, mesmo você sabendo que eu gostava muito de filmes românticos. Está certo, você não tinha que gostar também só porque eu gostava, ou fazê-lo para me agradar, só estou dizendo que não lembro, agora, se você me perguntasse se eu gostaria que tivesse acontecido, aí a história é outra, reconheço.

O que eu também não lembro é se tínhamos apelidos na mais indecente de nossas intimidades e, por maior que seja o esforço de memória, nada me ocorre. Sim, racionalizando, penso que seria mesmo patético qualquer coisa entre Zuzunga e Neneco, mas enfim, éramos um casal. E nem quando lhe contei sobre um antigo namorado, mil sonhos comuns, mil projetos comuns, dois mil anos juntos, não houve qualquer reação sua, fosse um mínimo de ciúme, fosse um mínimo de curiosidade, nada. Gustavo era o nome dele, te disse mesmo sem você ter perguntado. Dele, sim, lembro de quase tudo: tínhamos a nossa música, decorávamos trechos inteiros dos livros do Eça, comíamos comida indiana, dançávamos na sala ao som de Compay Segundo, enfrentávamos fila para a retrospectiva do Ettore Scola, inventávamos brigas para parecermos um casal comum. Ele me ensinou a fazer molho à bolognesa com tempero à lá Gus, eu ensinei-o a fatiar sashimi. E não esqueço, não esqueço nunca da vez em que ele provou wasabi, soltando fumaça pelas narinas, tadinho. A solução foi tacar-lhe sorvete de flocos goela abaixo, e então ele se acalmou, não antes de eu receber devidamente uma generosa série de palavrões, alguns inventados na hora, ele era ótimo nisso. De você eu não lembro dessas coisas, e não que você não tenha me marcado, muito pelo contrário. Você gostava de comida japonesa.

Queria me lembrar da ocasião em que você trouxe quatro flores lindas, mas esqueceu o queijo do fondue, e só nos sobrara uma garrafa de vinho, para comemorarmos sei lá o quê, e o sugestivo fouton da sala. Poderíamos morrer de fome, mas não de sede nem de amor, porque aquela noite seria longa e inesquecível. E só não foi absolutamente perfeita pelo detalhe de não ter acontecido, porque você inventou que EU ficara de trazer o queijo, e saiu batendo a porta, mais mal humorado do que de costume. Eu, o vinho e a vontade de ligar para o Daniel, um outro aí que, apesar de não saber beijar, era criativo em situações que pediam improviso.

Não lembro se você gostava de sorvete e se se culpava, todo santo dia, de ter consumido um pote (inteiro!) no fim de semana e que sua barriga tava crescendo e que precisava voltar a correr; não lembro se você me gravava vídeos na minha câmera, com mensagens secretas para eu descobrir depois, voltando pra casa; não lembro se você inventava vozes de gripe ao telefone para que eu, inocente, fosse até sua casa para você me raptar por uns dias; não lembro se você roubava o meu temaki de salmão quando íamos comer naquele restaurante japonês; não lembro se você me perguntava "você gosta de mim?", mesmo com meus olhos brilhando, brilhando, cada vez que você me aparecia num raio de 200 quilômetros; não lembro se você chegou a aprender a fazer macarrão com alcaparras e manjericão, naquele ponto 'al dente' que eu tanto gosto; não lembro se você colecionava filmes, e se fez uma cara de menino quando lhe presenteei com a primeira temporada da sua série predileta; não lembro se você, em algum momento, me deu flores de presente; não lembro se fomos passear na feirinha da Benedito Calixto; não lembro se você andava sempre com suas calças rasgadas; não lembro se você me abraçava no meio da noite, me acordando e me matando de calor, nem se você usava barba e se ficava mil anos mais novo se tirasse ela; não lembro se você dizia torcer para o São Paulo; não lembro se você me deixou aos prantos na vez em que seu carro quebrou na estrada e me deixou esperando, e não chegava nunca nunca nem atendia ao celular; não lembro se você deixou mil mensagens pedindo perdão; não lembro se você tinha vergonha de me dizer que nunca comera alcachofra e caviar; não lembro se você tinha o hábito de me pedir para voltar para casa com cuidado, como se evitar o perigo só dependesse de mim; não lembro se você gostava de ficar acordado de madrugada, vendo filmes ou escrevendo poemas; não lembro se o mundo para você acabava, em média, a cada três semanas, o intervalo em que costumava lembrar que precisava de dinheiro e de um emprego; não lembro se você gostava do meu cabelo rebelde, se pedia para eu dançar pra você, se adorava almoçar no terraço ou se dormia no meu ombro assistindo qualquer filme; e também não lembro se você cheirava primavera enquanto dormia, se roncava baixinho e dizia que era eu; se pedia pra eu não mostrar foto sua pras minhas amigas, já que dizia ficar feio nelas ou se morria de vergonha nas ocasiões em que, sem outra alternativa, tinha de dizer que gostava de mim. Não lembro de nada disso porque, provavelmente, não aconteceu.

Mesmo assim, eu não amo o Gustavo.

8 comentários:

Anônimo disse...

Que lindo, Má!

Anônimo disse...

Você é incrível! Todos esses anos te admiro, te observo e te acompanho. Sua luz já me cativou. Estarei sempre a sua disposição. Nunca se esqueça disso. Te adoro!

Anônimo disse...

Linda! Linda! Linda!

Anônimo disse...

Hum... Romântico isso, hein. Bjs

Edu

Anônimo disse...

Lágrimas nos olhos...

Anônimo disse...

Magnífico!

Anônimo disse...

Tô chorando até agora... Lindo! Lindo! Lindoooo!!!!

Anônimo disse...

Caraaacaaa!!! Nunca li nada tão lindo. Putz! Posso colocar no meu blog?